segunda-feira, 2 de maio de 2016

Héstia




A figura de Héstia, percorrendo um longo caminho de vários séculos, parece ressurgir na poetisa norte-americana Emily Dickinson que, à sua imagem, abdicou de uma vida possivelmente mais agitada ou, diriam muitos, mais rica e interessante, para se dedicar à casa, à família, à sua vida interior. Dickinson, num progressivo isolamento, nos seus últimos anos de vida limitou cada vez mais o seu contacto físico com pessoas, falando com elas através de uma porta fechada, recusando-se a sair de casa ou mesmo do quarto. As suas comunicações eram feitas essencialmente através de cartas (e aqui seria divertido identificar também a presença de Hermes).
Dickinson interessava-se pela natureza, pelas flores que cultivava no seu jardim, e era conhecida pela população local mais como jardineira que como poetisa. Estudou também botânica, e existe um herbário que fez ao longo da vida com mais de 400 exemplos de plantas classificadas segundo o sistema de Linnaeus. As flores colhidas no jardim, muitas vezes acompanhadas de pequenas notas ou poemas, eram também frequentemente enviadas a correspondentes no mundo exterior.
O jardim não sobreviveu ao passar dos anos, e apenas permanece nas entusiasmadas recordações de amigos e família. As plantas, com as suas variadas e distantes proveniências, eram certamente uma forma de viajar, ainda que através da imaginação, como a própria referiu: “posso habitar as “ilhas das especiarias” (Molucas) meramente atravessando a sala de jantar até à estufa, onde as plantas estão penduradas em cestos”. Alusões a flores e jardins são muito frequentes nos poemas de Emily Dickinson, servindo muitas vezes de substitutos para acções e emoções.
Continuando a pesquisa desenvolvida nos últimos anos em torno do tema da natureza-morta, procurando ampliar os seus limites, a intervenção para a exposição Héstia na Plataforma Revólver consistirá na “construção” de um jardim. Se pensarmos num jardim enquanto uma colecção de plantas, não serão os objectos que construímos e decoramos com referências ao mundo botânico também eles membros de um jardim, ainda que de uma forma metafórica? Será então um jardim de substituição, afastado do mundo exterior, mas ainda assim proveniente dele. Se quisermos, um jardim adaptado à escala e à vivência de uma casa, à medida da imaginação.
Outro dos atributos de Héstia era o fogo, a lareira que ardia no interior do lar de qualquer grego. Nos seus templos uma fogueira era também eternamente alimentada. Fazendo minhas as palavras de Emily Dickinson:


You cannot put a fire out;
A thing that can ignite
Can go, itself, without a fan
Upon the slowest night

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